Ela chegou ao lugar onde amanhecia, ao lugar onde a noite lhe fugia entre os dedos, onde a noite abandonava a pele branca do braço dele, frio e só, encostado à janela. Os olhos dele já nem brilhavam, eram atravessados pelo frio que reflectia o frio dos olhos dela. Nas paredes, os espelhos vazios deixavam de reflectir o nada, para, a pouco e pouco, se encherem com os primeiros sinais do amanhecer. Ele sentiu a sua presença. Sentiram a presença um do outro, uma presença que enchia a sala onde nascia o dia do mundo inteiro. Dentro daquele instante, como em todos os instantes em que alguma vez couberam juntos, disseram sem palavras aquilo que palavra nenhuma pode exprimir.
Ela aproximou-se, toda ela silêncio, toda ela vazio. E ficaram assim, ele encostado à janela, vendo o dia nascer lá fora como se quisesse absorver toda a noite nos seus olhos, e ela, estática, perto dele, toda ela silêncio, toda ela vazio, focando qualquer ponto no pescoço dele. E ela disse: não vou nunca compreender o teu amar. E ele tremeu, em reconhecimento da voz que falara finalmente. Tremeu, na expectativa anunciada do ruir do mundo e do fim da noite. E ela disse: nunca. Naquele instante, ele desviou os olhos do vidro gélido e pensou em como aquele silêncio entre eles existia apenas na escuridão oca da noite. Pensou em como o lento amanhecer lhes levava as dúvidas, que se colavam na testa em forma de gotas de suor, que escorria nas paredes como uma humidade depois da chuva.
Naquele instante, ele não disse nada. Ela leu-o, então, e afastou-se, ocupando a janela mais distante da dele. E ficaram assim, estátuas frias no frio da madrugada, auras escuras e olhos focados. O tempo passou. A manhã lá vinha, vitoriosa, para levar as dúvidas que se lhes colavam nas testas em forma de gotas de suor, que escorria nas paredes como uma humidade depois da chuva. Até que ela gritou: Não me ames! E ele olhou-a, a expressão vazia de quem sabe que nada tem a perder. Até que ela gritou: Não me deixes! E ele olhou-a, e naquele instante não disse nada.
Ela reprimiu um chorar, atou o cabelo, abraçou-o com força. Fizeram amor no chão frio de pedra morta, saudaram a manhã no perfume um do outro, teceram memórias doloridas que pudessem levar para sempre. E naquele silêncio tão branco amaram finalmente a pele um do outro, cozeram as feridas escuras que só doiem um instante, fecharam as pálpebras exaustas de quem já viu mais do que devia. Naquele instante, ele não disse nada. E então, o dia chegou em pleno, acordou a noite dos olhos dela, lavou a dor no peito dela, soltou fugaz o cabelo dela. Naquele instante, ele não disse nada. Naquele instante, ele olhou pela janela e leu no céu o anúncio do ruir do mundo. No instante seguinte, ele disse: nada. Ela olhou-o, a questão espelhada nos olhos, e, quase no mesmo instante, disse: nada? Nada. Nada há que leve a noite de dentro de ti.
Ela desviou o olhar. Sentiu no ar a presença pesada dos corpos deles, das almas deles, dos passados deles, da manhã deles. Ela desviou o olhar. E naquele instante não disse nada. Nem em qualquer instante que seguiu aquele.
31.03.2008
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